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O debate enviesado do autismo na mídia

A imagem apresenta um laço colorido formado por peças de quebra-cabeça em tons de azul, vermelho, amarelo e verde. O laço é um símbolo amplamente associado à conscientização sobre o autismo. O fundo da imagem é um jornal desfocado, com textos e colunas visíveis, mas sem nitidez suficiente para leitura. O efeito cria um destaque no laço, que simboliza a diversidade e a complexidade do espectro autista

O autismo tem sido uma pauta cada vez mais recorrente no debate público sobre os direitos das pessoas com deficiência. Nos últimos anos, a questão passou a ser retratada em produções audiovisuais, atraiu a atenção de governantes e avançou em políticas de inclusão social. Apesar dessa crescente projeção na esfera pública, a discussão sobre as demandas do autismo ainda não é realizada de maneira democrática, tendo em vista que os diferentes representantes do tema não encontram o mesmo espaço de fala nas arenas públicas. A maioria das matérias de jornal, por exemplo, concede visibilidade apenas à perspectiva dos familiares de pessoas autistas, o que dificulta a participação dos próprios afetados e contribui para a existência de conflitos entre os grupos de representantes. Neste artigo, reflito como a mídia jornalística tem colaborado para o enviesamento desse debate, uma realidade provocada pela falta de diálogo com novos pontos de vista.

Desde 2012, a legislação brasileira considera o autismo como uma deficiência e assegura o acesso a todas as políticas de inclusão do país, entre elas, o direito de matrícula em escolas regulares, prioridade de atendimento, auxílio financeiro e assistência de terapias. O marco legal da área (Lei 12.764/2012) segue critérios de origem biomédica, cuja abordagem define o autismo enquanto uma condição atípica associada ao neurodesenvolvimento, que pode provocar dificuldades persistentes de comunicação e interação social, além de padrões de comportamentos restritos, repetitivos e estereotipados. A literatura científica divide o espectro em três níveis, de acordo com o grau de dependência ou necessidade de suporte.

O enquadramento biomédico é a perspectiva adotada pelas associações que representam os familiares de pessoas autistas, admitindo o espectro como um transtorno a ser tratado em terapias comportamentais e cognitivas. Por outro lado, uma grande quantidade de autistas adultos e associações representativas buscam deslocar o tema de uma concepção patológica e atribuí-lo como uma característica da diversidade humana. No horizonte desses ativistas, as terapias têm o papel de melhorar a autorreflexão dos indivíduos e não podem ser usadas para maquiar características típicas de pessoas autistas, em nome de padrões culturalmente definidos pela sociedade.

Os diferentes pontos de vista alimentam a tensão dentro da comunidade, sobretudo, entre autistas ativistas e representantes familiares. Um dos exemplos mais recentes ocorreu durante o “I Seminário Internacional Autismo e Educação Inclusiva”, realizado pelo Governo Federal em setembro de 2024. Na ocasião, associações lideradas por autistas ativistas entregaram uma carta-denúncia ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, alegando problemas com o excesso de horas relacionadas à Análise do Comportamento Aplicada (ABA), técnica amplamente disseminada como o tratamento mais eficaz para crianças autistas. Segundo essas associações, as práticas terapêuticas excessivas, especialmente aquelas baseadas no modelo ABA, representam uma grave violação aos direitos humanos porque utilizam torturas e medidas coercitivas semelhantes a regimes manicomiais, tendo em vista a finalidade de corrigir comportamentos considerados desviantes.

A carta foi rechaçada pelos grupos de familiares e profissionais do setor. Eles saíram em defesa da validade científica do método, destacando os avanços comportamentais e cognitivos de crianças autistas que já passaram pelo tratamento, bem como os ganhos em termos de qualidade de vida para toda a família. O receio dos pais é o de que as operadoras dos planos de saúde utilizem o apelo das associações de autistas como argumento para suspender o acesso das famílias a essas terapias. O conflito levou o Ministério dos Direitos Humanos e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a se posicionarem publicamente sobre o tema. O Ministério decidiu instaurar uma câmara técnica para investigar a regulamentação de terapias destinadas a pessoas autistas, enquanto a ANS justificou que a decisão sobre a quantidade de horas terapêuticas de cada método compete aos profissionais de saúde responsáveis pelo tratamento e não ao órgão.

Há argumentos razoáveis nos dois lados da questão. Os familiares buscam as terapias comportamentais e cognitivas como forma de melhorar a qualidade de vida de seus filhos autistas, especialmente aqueles com maior dependência motora para tarefas diárias, a exemplo de comer, vestir-se ou falar, o que me parece uma demanda legítima. Já os autistas ativistas cumprem uma função importante ao problematizar que o excesso de terapias pode robotizar identidades e produzir sofrimento mental para os indivíduos que não atenderem às expectativas dos pais ou profissionais que os acompanham. Entendo que as divergências fazem parte do pluralismo democrático e são necessárias para induzir o progresso da sociedade, desde que respeitado o princípio de inclusão social. O que torna o debate problemático não é a mera existência do conflito, mas sim a assimetria de visibilidade dos diferentes pontos de vista. Historicamente, as questões relacionadas ao autismo no Brasil têm sido discutidas sob a liderança dos representantes familiares, o que contribui para o enquadramento do tema a partir de uma única perspectiva e pode levar à construção de políticas públicas enviesadas. Embora os autistas ativistas venham conquistando novos espaços de visibilidade nos últimos anos – em parte devido às possibilidades de comunicação digital ofertadas pelas plataformas de redes sociais –, a capilaridade do grupo ainda não alcança as arenas públicas da mesma forma que outros tipos de representantes.

Para ilustrar esse diagnóstico, apresento resultados preliminares de um mapeamento que realizei no portal da Folha de São Paulo, atualmente o jornal brasileiro com o maior número de assinantes. Os achados refletem as publicações ocorridas no período de 2021 a 2022, momento que marca os dez anos da política nacional para as pessoas autistas. Concentrei a análise apenas nas matérias, editoriais e artigos de opinião que apresentavam demandas por reconhecimento associadas ao autismo, somando um total de 41 publicações desse tipo. Os dados revelam a prevalência da perspectiva biomédica para o enquadramento do tema, isto é, todo o conteúdo (100%) publicado pela Folha de São Paulo considera o autismo como um transtorno ou distúrbio do neurodesenvolvimento. Essa abordagem pode ser resultado da maior participação dos familiares no papel de fontes ou personagens das notícias, tendo em vista que eles estão presentes em 39% das publicações realizadas pelo jornal. Em seguida, figuram as celebridades e os profissionais do meio jurídico, ambos com 15% de participação. Os especialistas da saúde ocupam 10% do conteúdo analisado, enquanto os autistas só aparecem em apenas 7%.

Na medida em que prioriza a perspectiva dos familiares, a Folha de São Paulo torna-se palco para as demandas defendidas por esses representantes, o que inclui a ampliação do acesso às terapias comportamentais e cognitivas, a exemplo do polêmico método ABA. A luta pela garantia de assistência terapêutica para pessoas autistas é a reivindicação com maior recorrência na Folha de São Paulo (44%), embora o jornal também aborde outros tipos de demandas, como o cumprimento de leis já existentes (32%), a importância de acessibilidade em espaços urbanos (27%) e a inclusão escolar de crianças autistas (20%). Todas essas questões estão na linha de frente das associações que representam os familiares de pessoas autistas, entretanto, as demandas prioritárias dos afetados nem sempre são as mesmas.

Essa breve descrição de dados demonstra a predominância da perspectiva dos representantes familiares na cobertura midiática, com a apresentação de demandas inseridas na realidade de crianças autistas, sobretudo, anseios das áreas de saúde e educação. Os pais utilizam o parentesco como fonte de autoridade para legitimar a ação coletiva a favor do desenvolvimento motor e cognitivo dos filhos, o que levaria à inclusão social. Entretanto, a falta de espaço para outros grupos de interesse pode distorcer demandas, enviesar a opinião pública e dificultar o avanço de políticas ampliadas. As crianças crescem, tornam-se adultas e ainda continuam sendo pessoas autistas. Quando adultos e, muitas vezes sem a presença dos pais, terão que enfrentar um novo cenário de problemas estruturais da sociedade, como a falta de oportunidades no mercado de trabalho e a limitada acessibilidade em espaços públicos. É por isso que a inclusão de novas vozes no debate sobre o autismo deve ser usada como estratégia para garantir a eficiência de políticas públicas, combater preconceitos e tornar visível diferentes pontos de vista, colaborando dessa forma para a expressividade de grupos historicamente marginalizados.

Ao defender a maior participação dos autistas na discussão do tema, não pretendo deslegitimar o espaço de fala dos familiares. Eles também desempenham um papel importante para a problematização de questões ligadas ao autismo. O ponto aqui é a necessidade de garantir a visibilidade para todos os representantes da comunidade, pois cada grupo tem algo a contribuir na deliberação de demandas de interesse comum. Essa inclusão de diferentes argumentos pode ser alcançada com a contribuição da mídia brasileira, na medida em que os veículos de imprensa forem capazes de adotar um olhar sistêmico para as múltiplas reivindicações sociais e seus respectivos representantes. A participação igualitária de todos os interessados — com o mesmo espaço de fala, respeito e reciprocidade — pode ser a chave para legitimar as demandas de maneira mais democrática, superando a distorção de questões maquiadas por visões tradicionalmente dominantes.

Escrito por

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Francisco Gabriel Alves

Doutorando em Comunicação Social pela UFMG e membro do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME/UFMG).