Em tempos de Oscar, vale lembrar que o de 2022 foi para um filme sobre o universo das pessoas surdas. Lançado em 2021 e exibido pela Amazon Prime, No Ritmo do Coração (título original CODA, Children of Deaf Adults) foi dirigido por Sian Heder e marcou a história do cinema. Seu verdadeiro mérito está em promover a inclusão da comunidade surda em um espaço que, por décadas, negligenciou essa representatividade. Com um elenco que inclui atores surdos renomados, como Troy Kotsur (Oscar de Melhor Ator Coadjuvante) e Marlee Matlin, a obra é uma rara combinação de entretenimento popular e compromisso social. No entanto, ao mesmo tempo que avança em inclusão, o filme ainda revela limitações em sua abordagem.
O maior trunfo de No Ritmo do Coração é a decisão de escalar atores surdos para interpretar os membros da família Rossi. Isso rompe com uma longa tradição de produções que colocam atores ouvintes para desempenhar papéis de personagens surdos. A atuação de Troy Kotsur e Marlee Matlin são profundas e humanizam seus personagens, mostrando-os como indivíduos complexos e independentes, com emoções, desejos e desafios próprios.
O filme também explora a dinâmica entre o mundo ouvinte e a cultura surda de maneira empática. Ele retrata as barreiras enfrentadas por pessoas surdas, como a dificuldade de comunicação com instituições e a exclusão social, enquanto enfatiza a força da cultura e da identidade surda e da Língua de Sinais Americana (ASL). A cena em que Ruby canta para seus pais usando ASL, enquanto se apresenta vocalmente, é um exemplo poderoso de como a história conecta os dois mundos, oferecendo um vislumbre de compreensão mútua.
Além disso, o filme desafia estereótipos comuns, mostrando que as pessoas surdas não são dependentes ou unidimensionais. Frank Rossi, por exemplo, é um pai espirituoso e empreendedor, que luta por sua independência na indústria da pesca, enquanto Jackie é uma mulher forte, que busca garantir que sua surdez não seja vista como uma fraqueza, mas como parte de quem ela é.
Apesar de seus méritos, o filme não escapa de uma limitação central: o protagonismo é majoritariamente dado à filha ouvinte, Ruby (Emilia Jones), e não aos membros surdos da família. Embora Ruby seja um ponto de entrada acessível para audiências ouvintes, a narrativa reforça uma dinâmica onde as pessoas com deficiência servem como contexto para o crescimento do personagem sem deficiência.
Um exemplo aparece na cena do recital de Ruby. Durante sua apresentação, a trilha sonora é cortada para que o público sinta a perspectiva dos pais surdos, Frank e Jackie. Essa escolha é poderosa ao transmitir a desconexão que eles experimentam em um momento crucial para a filha. No entanto, o filme rapidamente retorna à perspectiva de Ruby, enfatizando suas inseguranças e sua realização pessoal, sem explorar o impacto emocional do momento para os pais.
Um segundo limite é o tom conciliador do filme, que opta por soluções fáceis para questões complexas. A transição dos pais de Ruby para aceitar seus sonhos acontece de forma relativamente rápida e simplista, ignorando as nuances das tensões que muitas vezes existem entre culturas surdas e ouvintes, especialmente em famílias. Além disso, o filme toca superficialmente em temas estruturais importantes, como o preconceito e a falta de acessibilidade enfrentados por pessoas surdas no mercado de trabalho e na sociedade. Apesar de mostrar algumas dificuldades, como o isolamento da família Rossi na comunidade pesqueira, o longa não aprofunda essas questões nem as conecta com debates mais amplos sobre inclusão social e direitos da pessoa com deficiência.
Uma cena emblemática é a reunião comunitária dos pescadores, na qual Frank e Jackie dependem de Ruby como intérprete para se comunicar. A situação revela a barreira de acessibilidade enfrentada pelos surdos, mas não questiona os sistemas que perpetuam essa exclusão. Em vez de abordar a falta de intérpretes profissionais ou ferramentas de comunicação disponíveis, a narrativa foca na dificuldade pessoal de Ruby em lidar com essa responsabilidade, colocando novamente os desafios dos surdos em segundo plano.
O futuro do cinema inclusivo pode ser mais ousado ao priorizar o protagonismo das pessoas surdas em suas próprias histórias. Em No Ritmo do Coração, Ruby serve como uma ponte entre dois mundos, mas essa escolha reforça uma perspectiva onde o ouvinte é indispensável para a narrativa. Quando Frank coloca as mãos no pescoço de Ruby enquanto ela canta para ele. Embora seja um dos momentos mais emocionantes do filme, o foco permanece na conexão sensorial de Ruby com seu pai, ao invés de explorar o que esse gesto significa para Frank. O filme poderia ter incluído mais sobre as emoções e pensamentos de Frank, aprofundando sua subjetividade em vez de restringir a cena à jornada de Ruby.
Por fim, ao escolher não explorar a interação da família Rossi com a comunidade surda de forma significativa, o filme retrata o casal como isolados em uma comunidade ouvinte, mas pouco se mostra sobre como outros surdos poderiam influenciar, apoiar ou desafiar suas escolhas. Uma abordagem mais ampla incluiria cenas que explorassem como a cultura surda enriquece ou tensiona as dinâmicas familiares e profissionais.
Para avançar, o cinema precisa ir além da inclusão no elenco e ceder o protagonismo narrativo às pessoas surdas e com deficiência. Filmes que exploram a cultura surda em sua riqueza e complexidade, sem depender da mediação de personagens ouvintes, podem oferecer histórias impactantes. Além disso, o envolvimento de roteiristas e diretores surdos no processo criativo ajudaria a trazer autenticidade e profundidade às narrativas.
No Ritmo do Coração é um marco importante, mas também um lembrete de que há muito a ser feito. O próximo passo é um cinema que não apenas represente a diversidade, mas que também a coloque no centro, desafiando estereótipos e criando espaço para histórias que sejam tão profundas e autênticas quanto as vidas que pretendem retratar.